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Foram quase dois meses de trabalho, primeiro realizando uma capacitação com cerca de dois mil motoristas de ônibus em Recife, em seguida partindo para Maceió onde em quatro dias capacitei mais 400 motoristas. Vou escrever um post longo e completo, assim alguém que não domine o assunto poderá usar esse post como fonte.

Qualquer ciclista que pedala com relativa regularidade, seja qual for a cidade brasileira, sabe que a convivência com os carros de passeio é complicada, mas não chega a ser tão complexa (para não dizer aterrorizante) quanto é a relação de convivência com os veículos maiores e se perguntarmos o que mais aterroriza os ciclistas, 99% deles irão responder que são os motoristas de ônibus.

Compartilho desse sentimento desde minhas primeiras pedaladas, mas o que motivou a fazer algo foi quando realizei um mapeamento das mortes de ciclistas na cidade de São Paulo. Recebi da CET-SP dados referente a mortes de ciclistas de 2006 a 2008 com informações de idade, sexo, profissão, causa mortis, data, hora e local do óbito, mas principalmente o tipo de veículo com o qual o ciclista se envolveu no acidente.

Mais de 90% das mortes de ciclistas que analisei, ocorreram após uma colisão com veículo automotor e em 100% desses casos ocorreu alguma infração por parte dos motoristas, mesmo nos raros casos onde o ciclista também cometeu alguma infração.

Analisando apenas os números de 2006 (um total de 84 mortes), em 20 casos não havia informação sobre o envolvimento de outro veículo, sugerindo que o ciclista morreu sozinho. Ocorre que em 80% desses casos ocorreram Trauma Craniano e Politraumatismo, portanto podemos considerar que em boa parte dessas mortes apenas não foi possível identificar qual veículo causou a queda do ciclista. Já naqueles que a identificação foi possível, os números foram esses:

Motos – 5
Caminhões – 8
Automóveis de passeio – 25
Ônibus – 29

A soma dá 87, mas isso se dá porque em alguns casos houve a participação de mais de um veículo (como no caso da Julie Dias, ciclista que foi atropelada na Paulista em 2012) e também há casos onde um único veículo foi responsável pela morte de mais de um ciclista.

Claro que todos os números são preocupantes não importa o tipo de veículo em questão, mas para cada categoria devemos ter uma ação diferenciada. Mortes envolvendo ciclistas e motoqueiros vêm aumentando a cada ano e preocupa, no caso dos caminhões, a maioria desses óbitos ocorre em vias que dão acesso a rodovias, um exemplo foi o caso daquele ciclista que foi atropelado por um caminhão ao ultrapassar um ônibus na Avenida Pirajussara em 2014, essa via dá acesso a BR-116 que liga São Paulo a Curitiba. Em casos como esses a solução é a instalação de segregação física para o ciclista, nesse em específico já era para haver uma ciclovia nessa avenida desde 2010, por exemplo.

O número de 25 envolvendo automóveis de passeio também é preocupante, para essa categoria, educação em massa e fiscalização pode surtir bastante efeito, mas o que realmente me espantou foram os 29 ônibus envolvidos em acidentes fatais com ciclistas. Na época, enquanto a frota de automóveis beirava os 5 milhões, a de ônibus girava em torno de 15 mil.

Analisando mais a fundo, apesar de existir psicopatas dirigindo veículos motorizados em tudo que é canto do Brasil, sempre reparei que a maioria dos motoristas que nos colocam em riscos, não tinha a menor noção de que tal atitude poderia nos matar e muito menos a ciência de que estavam desrespeitando alguma lei de trânsito (como os artigos 201 e 220) e isso ocorria também com os motoristas de ônibus.

Sabendo dessa realidade e sabendo também que a maioria dos motoristas que começam a pedalar, acabam mudando seu comportamento ao volante pelo simples fato de conhecerem ou outro lado, resolvi criar um treinamento onde eu não apenas os ensinava leis de trânsito, mas principalmente tentava mostrar aos motoristas como era o nosso universo, assim sabendo os motivos dos nossos comportamentos, eles poderiam avaliar os riscos e tomar atitudes para evitar um acidente.

Em junho de 2009, em parceria com a SPTrans, montei um treinamento e repassei aos multiplicadores das empresas de ônibus de São Paulo. Foram mais de 7 meses capacitando um total de 30 mil motoristas e os resultados foram quase perceptíveis, vejam os números abaixo:

Número de ônibus envolvidos em óbitos de ciclistas

2006 – 29
2007 – 15
2008 – 13
2009 – 22 (treinamento foi repassado de junho/2009 a janeiro de 2010)
2010 – 9
2011 – 11

Infelizmente não tenho os dados a partir de 2012 e lembrando que apesar de treinarmos 30 mil motoristas de ônibus ligados a SPTrans, na conta acima incluí fatalidades envolvendo ônibus rodoviários, fretados e principalmente os intermunicipais, ou seja, se considerarmos todos os ônibus que passam por São Paulo, esse número de 30 mil motoristas de ônibus deveria, no mínimo, dobrar. Mas levando em conta só os óbitos que ocorreram com veículos da SPTrans (segundo essa matéria), os números mostram que o treinamento ajudou a reduzir em mais de 60% o número de fatalidades com ciclistas nessa categoria:

2009 – 12
2010 – 6
2011 – 4

Falando sobre o conteúdo do curso, na primeira versão procurei focar em legislação e para mostrar a visão do ciclista, usei 3 ciclistas voluntários, de diferentes perfis e mostrei como eles se comportam no trânsito de São Paulo. O treinamento em si estava bom, e os motoristas que passavam por ele, além de serem receptivos, acabavam mudando seu comportamento em relação a nós, mas ficou claro que para maior eficácia, era vital o envolvimento das empresas de ônibus. Enquanto algumas realizaram um excelente trabalho, outras faziam pouco caso, tanto é que o Denis, personagem que irei falar mais adiante, sequer passou pelo treinamento.

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Dinâmica realizada em 2012 em São Paulo

Buscando aprimorar o treinamento, em 2012, novamente em parceria com a SPTrans, realizamos uma dinâmica com as empresas (veja mais detalhes da dinâmica nesse link) e ali encontrei o personagem perfeito para a versão 2.0 do treinamento, o Denis, um motorista de ônibus que usa sua bicicleta como meio de transporte. Ninguém melhor do que alguém que conhece sua realidade para provar que o compartilhamento com ciclistas é possível. Percebi também que não adiantava enfiar o dedo na cara do motorista de ônibus e apontá-lo como vilão. Em sua maioria são pessoas de ótima índole, pais de família (infelizmente mulheres são poucas), sabem da sua importância enquanto cidadãos, mas que também tem a percepção de que são pouco (ou quase nada) valorizados pela sociedade.

Tendo isso em mente, bolei um treinamento que focasse mais na sensibilização, ao invés de revanchismo, tentei transformá-los em aliados, procuro fazer analogias ao trânsito como se fosse uma grande cadeia alimentar, onde em sua base estão os mais fracos, pedestres e ciclistas e no topo, com superpoderes, eles, os motoristas de ônibus. Quem assistiu o filme “Rei Leão” deve se lembrar dos personagens “Timão e Pumba” que resolvem adotar e proteger um filhote de leão para os protegê-los no futuro. A ideia é a mesma, mostro a eles que quero mudar essa realidade, mas que ao contrário de mim, que não tenho força alguma com minha bicicleta, ele ao pilotar se ônibus (o Leão) recebe muito poder e ao invés de usar sua força para se impor, porque não usá-la para proteger os mais fracos?

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Foram quase dois anos trabalhando num formato mais eficiente e como desde 2009 venho recebendo pedidos de ciclistas e agentes do poder público fora de São Paulo para levar esse treinamento até suas cidades, procurei deixar o treinamento com uma cara mais nacional, assim com pouquíssimas alterações poderia adaptá-lo a qualquer cidade brasileira.

Desde março de 2013 venho conversando com o pessoal da Secretaria das Cidades de Recife, além de alguns cicloativistas da cidade, na tentativa de levar esse treinamento até lá e muito graças a um patrocínio do Banco Itaú, conseguimos viabilizar uma campanha para capacitar cerca de 6 mil motoristas da região metropolitana de Recife.

Antes mesmo de ir para Recife, também recebi o contato da Fernanda Cortez, ciclista e também assessora técnica da Superintendência de Mobilidade Urbana de Maceió, ela queria aproveitar minha vinda a Recife (que fica a menos de 300 km de Maceió) para que eu capacitasse cerca de 700 dos cerca de 1200 motoristas da cidade, isso porque eles haviam implantado na principal via da cidade, uma faixa exclusiva de ônibus que oficialmente seria compartilhada com ciclistas, algo inédito no Brasil (falo sobre no post que irei escrever sobre a cidade).

Quando cheguei à Recife confesso que entrei em pânico, além de sentir um trânsito muito mais selvagem que o de São Paulo, não demorou para perceber que teria um trabalho bem complicado com os motoristas de ônibus. Apesar da minha experiência como ciclista, foram vários os momentos que temi pela minha vida, isso porque eu resolvi que iria a todas as garagens pedalando, sem importar a distância entre elas e o local onde estava hospedado, isso significou que iria pedalar, em média, de 20 até 60 km por dia.

Ir de bicicleta fazia todo o sentido, pois eu literalmente entrava pedalando nas salas de aula. Apesar dos problemas dos ciclistas brasileiros serem parecidos, cada cidade tem suas particularidades e o fato de eu pedalar nelas fazia com que os motoristas dessem mais credibilidade ao treinamento. Sem contar que acabei conhecendo a região metropolitana de Recife de uma forma que poucos ciclistas (ou mesmo demais moradores) da cidade conhecem.

O carro está estacionado exatamente sobre uma ciclovia.

O carro está estacionado exatamente sobre uma ciclovia.

Infelizmente não consegui capacitar os seis mil motoristas que pretendíamos por diversos motivos, seja pelo período de férias ou mesmo devido ao baixo comprometimento de algumas empresas com o treinamento, de qualquer forma atingimos cerca de 2000 motoristas em um mês e foi nítida a mudança de comportamento dos mesmos, algo que eu conseguia sentir dia a dia, enquanto pedalava até as garagens.

O treinamento era dividido em 3 partes, na primeira eu tentava explicar como funcionava a cabeça do “Bicho-ciclista”. Sim, comparava o ciclista como um bicho (Timão e Pumba) que é solto em uma selva e que cria seus próprios códigos de sobrevivência, pois está claro que essa selva não o quer fazendo parte dela. Mostrava como funciona a lógica do deslocamento do ciclista e seu comportamento instintivo na hora de tomar algumas atitudes, mesmo aquelas que os colocam em risco ou que os forçam a cometerem infrações. Fazia exercícios onde eu os colocava na mesma situação e eles se viam fazendo exatamente o mesmo que  tanto condenavam enquanto dirigiam suas máquinas.

Na segunda parte eu falava de legislação ao mesmo tempo em que continuava ilustrando as atitudes defensivas dos ciclistas. Já a terceira ia para a prática, como evitar um acidente com o ciclista, nesse momento usava meu trunfo, o vídeo abaixo funcionava como transição entre essas duas fases do treinamento, os convido a assistirem o vídeo para depois retornarem a leitura.

[vimeo=https://vimeo.com/88012447]

Nesse vídeo apresentava o Denis, que na primeira parte do vídeo se concentra apenas em falar o quanto ele gosta de pedalar e o que a bicicleta representa em sua vida. O vídeo até fica chato em alguns momentos propositalmente, mas antes de terminar o segundo minuto do vídeo vem a sua apresentação – “Meu nome é Denis, tenho 37 anos, sou de São Paulo e sou MOTORISTA DE ÔNIBUS”.

Nesse instante presenciava todo tipo de reação, desde espanto até palmas, minha diversão era ficar olhando para os motoristas só para ver a reação deles. Invariavelmente todos acabavam se concentrando na segunda parte do vídeo, até aqueles mais resistentes ao treinamento. Não era mais um ciclista qualquer cagando regras, era alguém que sabia exatamente quais suas dificuldades, enquanto ele dirigia um ônibus, não falava o que eles devem fazer, mas sim O QUE ELE FAZ para evitar um acidente com um ciclista. Se até então ainda havia alguém armado, esse era momento que todos se desarmavam e ao termino do vídeo voltava as situações de conflito citadas pelo Denis e podia finalizar o treinamento.

Depois que terminei o treinamento em Recife segui para Maceió, lá realizei o treinamento por 4 dias, capacitando cerca de 400 motoristas participaram, um terço do total de motoristas de ônibus da cidade.

Faixa de ônibus oficialmente compartilhada com o ciclista em Maceió. Até onde eu sei, a primeira do Brasil

Faixa de ônibus oficialmente compartilhada com o ciclista em Maceió. Até onde eu sei, a primeira do Brasil

Os resultados foram imediatos em ambas cidades, ouvi de ciclistas de Recife que antes do treinamento eles tinham medo dos carros, mas PAVOR dos ônibus, pois eles pareciam que poderiam mata-los a qualquer momento, mas que esse sentimento acabou mudando com o tempo. Eu mesmo conseguia sentir essa diferença nas ruas das duas cidades, era comum encontrar meus “alunos” na rua e ser recebido por acenos, ser chamado de “professor” e principalmente vê-los praticando as orientações que passei nos treinamentos, tanto diretamente comigo, ou com outros ciclistas. Sempre que possível eu procurava ficar num canto da calçada, fora da vista dos motoristas e observava o comportamento deles. Foram tantas as situações animadoras que se eu relatasse 10% delas esse post dobraria.

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Cada motorista que participava do treinamento recebia um questionário onde procurava descobrir qual o papel da bicicleta em suas vidas, vejam os resultados de algumas questões abaixo com meus comentários.

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Acima a pergunta mais básica, se eles sabem pedalar e se tem bicicletas, mas abaixo uma pergunta importante, se eles tinham a intenção de incluir a bicicleta em suas rotinas, sendo que aqueles que já pedalavam com regularidade pedia para marcarem o “sim”.

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Também quis saber se havia pessoas próximas a eles que usassem a bicicleta com regularidade, além do nível de afinidade com essa pessoa, aqui eles poderiam marcar mais de uma opção. Apesar de “amigos” ser o maior número, o interessante é que “filhos” vinham logo em seguida. No final das contas usava esse número expressivo para sensibilizar os motoristas sobre a importância de nos proteger, pois eles também gostariam que seus filhos fossem protegidos pelos demais.

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No treinamento de Maceió incluí uma avaliação, tanto do treinamento como das mudanças no comportamento deles após o mesmo, primeiro que 97% dos motoristas disseram que mudariam seu comportamento em relação aos ciclistas após o curso, quando pedi para eles darem uma nota para essa mudança, 4% delas variavam de 1 a 5, enquanto 96% deram notas de 5 a 10, sendo que 48% deram nota 10 a mudança.

Todos esses números são animadores, mais uma vez, tenho certeza que aprendi muito mais com esse treinamento do que os motoristas que capacitei, foi uma troca intensa e uma experiência única. Cheguei a diversas conclusões depois dessa experiência, descobri que a melhor forma para realizar esse treinamento é em formato de campanha, apenas treinar os multiplicadores pode ajudar, mas a eficácia nunca será a mesma, até porque são raros os multiplicadores que pedalam. No Brasil há uma perversa cultura onde o maior sempre se impõe perante o mais fraco, esse treinamento, muito mais do que proteger o ciclista, tem como objetivo abrir a mente desses motoristas e mostrar que eles estão se deixando levar por essa cultura e que precisamos deles para mudar essa realidade.

Minha alegria era ver o resultado ao final do treinamento, percebia nos olhos da maioria dos motoristas que capacitei uma compreensão da realidade e uma motivação para lutar contra a lógica que os domina. Ao término das palestras, ao invés de questionamentos, eles me diziam que compreenderam qual o papel deles para a mudança dessa lógica perversa e se colocavam a disposição para serem agentes dessa mudança.

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Agora vou conseguir fechar esse treinamento e o objetivo é capacitar os motoristas de ônibus da minha cidade (São Paulo), não apenas os ligados a SPTrans mas sim todos os que trafegam por aqui. Não será fácil, mas tenho certeza que poderei contar com muitos parceiros que, como eu, estão engajados nessa luta.

Pra encerrar quero fazer um agradecimento a todos que colaboraram para que esse trabalho, de alguma forma, fosse realizado. Um agradecimento especial ao Itaú que sempre acreditou no meu projeto e em nenhum momento tentou interferir no conteúdo ou na forma do meu trabalho. Agradeço também tanto a Secretaria das Cidades de Pernambuco, como a Prefeitura de Maceió que apostaram e me ajudaram de todas as formas possíveis para a realização do treinamento. Ao pessoal da Ameciclo, em especial ao Guilherme e ao Daniel que não só acreditaram mas que também ajudaram de forma direta durante esse tempo que estive por lá. Não posso deixar também de agradecer a galera de Maceió, principalmente a Fernanda, que tanto batalhou para esse treinamento acontecer. E um agradecimento mais especial a minha parceira, que esteve sempre ao meu lado, dando seu sangue (algumas vezes literalmente) para que esse projeto acontecesse, saiba que farei de tudo para que você esteja ao meu lado em mais momentos como esses.

André Pasqualini