Passei longos e torturantes 3 meses longe do meu filho. Quem me acompanhou pelo blog durante a viagem do Projeto Biomas, sabe o quanto sofri com essa separação. Cheguei sábado a São Paulo e obviamente quis passar o domingo com meu filho.

Estava tendo um domingo maravilhoso com ele, fui ao Parque das Bicicletas ver meus amigos e meus irmãos que estão trabalhando num projeto SOS Bike da Ciclofaixa e quando estava saindo, por muito pouco meu final de semana mágico não se transformou numa tragédia.

Saímos do Parque das Bicicletas e logo a frente há uma faixa de travessia de ciclistas e pedestres sinalizada no solo. Durante a operação da Ciclofaixa de Lazer o semáforo ali instalado fica ligado. Quando o semáforo está desligado, segundo um agente da CET, aquilo vira uma faixa de travessia normal onde o pedestre e o ciclista tem prioridade, como deveria ser em todas as faixas de pedestres não-semaforizadas pela cidade.

Meu irmão estava com meu filho e eu levava sua bicicleta, olhamos, não vinha carro algum e começamos a travessia, mas não tinhamos percebido um Corsa (placa:DBQ 6220) que vinha em alta velocidade pela Indianópolis sentido Ibirapuera, com certeza a mais de 100 km/h, onde a máxima da via são absurdos 60 km/h. Quando vimos o carro, meu irmão que já havia começado a travessia, correu com meu filho e eu voltei. O motorista deu uma travada no freio, o que deu tempo para ele atravessar.

Passando pela gente ele seguiu acelerando, foi quando o semáforo da Indianópolis com a Avenida Ibirapuera fechou e vários ciclistas e pedestres começaram a travessia. Vi o motorista travando o freio e acertando em cheio o ciclista Álvaro Alves que trabalha fazendo entregas para uma padaria da região. O Álvaro caiu e bateu a cabeça no chão.

Corri para o local, saquei minha máquina para tirar uma foto do carro do motorista. No local haviam vários ciclistas que também viram tudo e tentaram falar com o “monstrorista”. Quando estava me aproximando o motorista começou a fugir, tirei essa foto aqui quando meu amigo Ricardo tentava impedir a fuga, mas sabendo do risco de vida que ele corria, comecei a pedir para ele apenas pegar a placa, já que minha foto não ficou nítida.

Liguei na hora para o 190, o atendente me perguntou se o ciclista estava machucado. Aparentemente não estava, mas como havia batido a cabeça e estava com dores, pedi para mandarem uma ambulância. Disseram que iriam me transferir para os bombeiros e eu perguntei “Mas e o motorista fugitivo?”. Pediram a placa e me passaram para os bombeiros.

Minutos após chegou uma viatura da GCM (Guarda Civil Metropolitâna) que deu todo o suporte a nós e pediu até para cancelar a ambulância a pedido da própria vítima. Esse oficial da GCM, que infelizmente esqueci o nome, foi extremamente solícito e auxiliou a vítima, principalmente com os trâmites burocráticos para podermos tentar algo para que isso não acabe em pizza.

Na foto abaixo tem as marcas da freada, o motorista além de cruzar o semáforo vermelho, também estava em alta velocidade, algo que qualquer perito poderia constatar, caso vivêssemos num país sem impunidade.

Sua bicicleta ficou amassada, mas pior mesmo foi para o ciclista que eu vi ser arremessado, mesmo estando a uns 100 metros do local.

Nesses dias que antecederam a minha chegada, fiquei horrorizado com as cenas do strike de ciclistas em Porto Alegre, promovido por um motorista que “ficou nervoso” ao ver vários ciclistas trafegando na sua frente. Esse outro “monstrorista” julgou e condenou os ciclistas que no seu modo de ver a vida, estavam errados e resolveu fazer justiça com as próprias mãos (volante). Acelerou e numa cena bizarra de covardia, atropelou dezenas de ciclistas. Vejam o vídeo abaixo, ele tem 9 minutos mas a carnificina ocorre aos 55 segundos.

Primeiro narrei os fatos mas agora vem minha real consternação. Claro que fiquei horrorizado com o comportamento assassino dos dois motoristas e tenho certeza que milhares de pessoas também ficarão. Mas o que me deixa abismado é a tentativa de algumas pessoas de defender esses dois homicidas.

No caso de Poa (Porto Alegre) o delegado responsável pelo caso não fez uma busca atrás do suspeito e disse que iria esperar ele se entregar. Depois venho falar que o passeio não tinha autorização e que errado eram os ciclistas.

PARA TUDO!

Nem vou entrar no mérito e na legitimidade da Bicicletada de Poa. Esse “delegado” desconhece as leis, os ciclistas não “trancavam” a via, eles trafegavam como manda a lei, só que em velocidade até maior do que a que diariamente estamos acostumados a ver as “manifestações” que motoristas promovem. Só aqui em São Paulo, essas “manifestações”, causam mais de 100 kms de congestionamentos diariamente.

Não vou perder tempo explicando lei a delegado, só digo uma coisa, tirando a atitude do “monstrorista”, tudo ali estava ocorrendo dentro da lei, mas será que ninguém está notando que essa “Ode ao carro” que nossa sociedade vive está nos transformando em monstros?

No Brasil os governos ficam cegos nessa luta desenfreada em trazer apenas benefícios aos motoristas, mesmo que isso custe a vida de quem vive fora dos carros. Se alguém de algum governo tenta fazer algo como colocar radares, lombadas, ou resolve fazer aplicar punições com base no CTB (Código de Trânsito Brasileiro), logo aparecem estúpidos falando de indústria de multas. Nossas leis de trânsito são as melhores do mundo, o problema é que elas não são aplicadas. Sem falar que ao menor descuido, aparecem alguém tentando piora-las. E conseguem, como fizeram quando conseguiram alterar de 20% para 50% de infração gravíssima para quem anda acima dos limites da via.

Parece que no sub consciente coletivo, sempre o motorista é o coitado. A maioria da imprensa, ao noticiar um atropelamento, raramente cita o estado do acidentado mas em 100% das vezes informa quanto de congestionamento o atropelado está causando.

Outra coisa comum é tratar esses homicídios como acidentes. Se analisarmos todos os atropelamentos que ocorrem no Brasil, veremos que a minoria, menos de 10% podemos dizer, foram realmente acidentes. Se um motorista desrespeita a lei, ele está assumindo o risco de machucar alguém, portanto tudo que ocorrer a partir de então jamais pode ser tratado como um mero acidente.

Nessa minha viagem que acabei de realizar, pedalei por 6800 kms de estradas no Brasil e sabe quantos policiais rodoviários eu encontrei tentando fazer algo para tentar evitar esses “acidentes”? Nenhum. Foram raros os casos que os vi na estrada, na maioria das vezes eles estavam nos postos da polícia e num deles vi até uma rede de descanso.

Enquanto isso os motoristas tinham salvo conduto para deitar e rolar. Nas BRs por onde passei, a máxima era de 80 km/h. Se esses policiais estivessem com um radar em mãos, raramente iriam pegar alguém trafegando dentro do limite, mas policial punindo mal motorista? Ah, eles tem coisas mais importantes para fazer, né?

Enquanto isso dois policiais rodoviários me pararam para saber o que aquele “perigoso cicloturista” deveria estar carregando em suas malas. “Para o meu bem” resolveram fazer uma revista nos meus alforges, e ao invés de tentar coibir o excesso de velocidade da maioria dos motoristas, acharam mais prudente transformar meu miojo em sopa de letrinhas.

Acabei cortando a série de posts sobre a minha viagem pois não poderia deixar isso em branco. Hoje haverá uma Bicicletada em São Paulo em solidariedade aos ciclistas de Poa. Para participar basta aparecer na Praça do Ciclista a partir das 18h00, mais informações clique aqui.

Em tempo 1: Ironia ou não, leiam o folheto que o pessoal da Massa Crítica de Poa costuma a distribuir aos motoristas durante a Massa Crítica.

Em tempo 2: Apesar de fazer uma crítica a parcela da imprensa, bato palmas para o comentário do Alexandre Garcia no Bom Dia Brasil de hoje (28/02) “Motoristas devem ser responsáveis pela segurança de ciclistas nas ruas“. Isso é LEI, mas mesmo se não fosse deveria fazer parte da consciência de todo mundo que usa essa arma (carro) para se locomover.

Em tempo 3: Ciclista inconsequente pode morrer, mas motorista inconsequente pode matar.