Peço licença ao Milton Jung por usar no título desse post a frase que ele mandou muito bem num dos seus twitter, provavelmente em resposta a algum motorista que deveria estar cobrando isonomia de tratamento, exigindo que o pedestre que atravessasse fora da faixa também fosse multado. Então vamos começar a discutir a questão do pedestre.

Os números:

Das 1382 mortes no trânsito de São Paulo, 630 são pedestres e 200 são de motoristas ou passageiros. Enquanto em São Paulo, 14% das mortes no trânsito envolvem motoristas e passageiros, em cidades européias, esse número chega a 70%. Portanto o problema de atropelamentos de pedestres é algo grave e deve ser tratado com prioridade por parte do estado.

A legislação:

Vamos primeiro ao Parágrafo Segundo do artigo 29 do CTB (Código de Transito Brasileiro)

§ 2º Respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.

Esse parágrafo deixa claro que a preferência é da vida, quem dirige qualquer veículo (até mesmo os ciclistas) tem que zelar pela segurança dos mais fracos. Eu já atropelei um pedestre, apesar do farol estar verde para mim, uma garota atravessou no vermelho porque considerou haver tempo para ela. Só que acabou induzindo a avó a fazer a travessia sem sequer olhar para a rua (por achar que estava verde para ela). Tentei desviar mas não foi possível e acabei atropelando a senhora.

No final das contas, apesar de estar verde para mim, a culpa foi minha. Primeiro porque, devido a uma chuva forte que peguei no dia anterior, minha bicicleta ficou com os freios prejudicados e só percebi quando precisei acionar na colisão, numa situação de emergência. Se meus freios estivessem bons eu conseguiria evitar a colisão. Por sorte o atropelamento não resultou em nada mais grave. Agora se eu estivesse de carro…

Vamos então para os artigos 69 ao 71 do CTB:

Art. 69. Para cruzar a pista de rolamento o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta, principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos, utilizando sempre as faixas ou passagens a ele destinadas sempre que estas existirem numa distância de até cinqüenta metros dele, observadas as seguintes disposições:

 I – onde não houver faixa ou passagem, o cruzamento da via deverá ser feito em sentido perpendicular ao de seu eixo;

II – para atravessar uma passagem sinalizada para pedestres ou delimitada por marcas sobre a pista:

 a) onde houver foco de pedestres, obedecer às indicações das luzes;

 b) onde não houver foco de pedestres, aguardar que o semáforo ou o agente de trânsito interrompa o fluxo de veículos;

III – nas interseções e em suas proximidades, onde não existam faixas de travessia, os pedestres devem atravessar a via na continuação da calçada, observadas as seguintes normas:

 a) não deverão adentrar na pista sem antes se certificar de que podem fazê-lo sem obstruir o trânsito de veículos;

 b) uma vez iniciada a travessia de uma pista, os pedestres não deverão aumentar o seu percurso, demorar-se ou parar sobre ela sem necessidade.

 Art. 70. Os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem, exceto nos locais com sinalização semafórica, onde deverão ser respeitadas as disposições deste Código.

 Parágrafo único. Nos locais em que houver sinalização semafórica de controle de passagem será dada preferência aos pedestres que não tenham concluído a travessia, mesmo em caso de mudança do semáforo liberando a passagem dos veículos.

Art. 71. O órgão ou entidade com circunscrição sobre a via manterá, obrigatoriamente, as faixas e passagens de pedestres em boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização.

Aqui começa a confusão, pois o Artigo 69 diz que o pedestre tem que usar a passagem ou faixa de pedestre, sempre que ela estiver a menos de 50 metros dele. Diz também que para passar uma faixa sinalizada sem semáforo (no CTB a palavra usada é FOCO) ele deve aguardar que o semáforo ou agente de trânsito interrompa o trânsito de veículos.

No inciso III diz que nas intersecções (ou cruzamentos), quando não existir faixa de travessia, eles devem seguir a continuação da calçada, “mas” não adentrar na pista sem obstruir o trânsito de veículos.

Aqui uma falha grave do código, pois dá o direito do motorista acelerar e obriga o pedestre a ter que esperar a conveniência do motorista. Depois complementa que, uma vez iniciada a travessia, o pedestre não pode aumentar o seu percurso, demorar-se ou parar sobre ela sem necessidade.

O que é demorar? Uma idosa de 70 anos, um cadeirante ou uma pessoa com carrinho de bebê tem uma velocidade diferente de um jovem de 20 para realizar uma travessia.

Depois tem o artigo 70 que só complica a situação. Aqui ele diz que os pedestres que estão atravessando a via, terão prioridade de passagem. Mas segundo o artigo 69, só depois que o semáforo (que não existe) fechar, ou se o agente de trânsito parar o trânsito. Ou seja, se estiver cruzando uma ponte de São Paulo a pé, e tiver que atravessar uma alça de acesso, em São Paulo ligue para o número 1188 e peça para mandarem um agente ir até você para parar o trânsito. Tem cabimento essa legislação?

Seria muito mais simples se, a exemplo das cidades de outros países, onde existe o respeito ao pedestre, que constasse no CTB de forma clara, que o pedestre, sempre onde houver faixa, ou mesmo se não houver uma a menos de 50 metros, ele tem total prioridade tanto para iniciar a travessia, quanto para terminá-la. Essa falha grave no CTB só ajuda a livrar da cadeia os péssimos motoristas que não respeitam a vida fora do carro.

A realidade do pedestre

Pode até parecer o contrário, mas infelizmente, essas “pegadinhas” no CTB acabam servindo para os motoristas infratores se safar de punições mais severas. Vamos citar o exemplo daquela ex-professora da PUC que recentemente foi atropelada, sobre a faixa em Perdizes. O advogado do motorista pode alegar, com base na lei, que como não havia um semáforo, a pedestre deveria esperar com que um agente de trânsito interrompesse o tráfego para que ela pudesse atravessar, mesmo sobre a faixa.

Por mais absurdo que possa parecer, estou cansado de saber de processos onde a vítima acaba sendo punida, primeiro porque ela não está lá para dar a sua versão. Mas principalmente porque a maioria dos nossos juízes, procuradores e advogados, são motoristas e raramente vivem os dramas que afligem os pedestres, pois param no valet do restaurante, tem vagas privativas, tanto em casa como nos fóruns e infelizmente é muito mais fácil eles se solidarizarem com um semelhante (o motorista) do que alguém que sofre para viver fora de uma bolha de metal.

Graças a tudo isso e principalmente a sensação de impunidade, eu mesmo, como pedestre, diversas vezes opto por atravessar fora da faixa. Se estou no meio de uma quadra, mesmo com uma faixa na esquina, opto por realizar a travessia no meio dela, com isso tenho uma boa visão e avaliação para saber se o carro que entrou na rua vai “me pegar” ou não. Além do fato que raramente saberei se o motorista fará a conversão (por não usar a seta) ou se vai parar para eu atravessar (como reza o bom senso).

Agora se eu tivesse certeza que, pisando na faixa de pedestres, os carros irão parar e eu farei a travessia com segurança, andaria até mais de 50 metros para realizar a travessia.

Outro problema são as travessias semaforizadas. Não conheço um semáforo em São Paulo que você pressione aquele botão e ele feche imediatamente para os carros. Mesmo se o semáforo estiver aberto a meia hora para os carros, assim que você pressiona o botão, ele vai esperar os famosos “ciclos” para então fechar.

Perto de casa, em frente ao Hospital do Campo Limpo, há um semáforo de pedestres que serve para as pessoas que descem do corredor de ônibus, ou pretendem cruzar a via para chegar no Hospital. Esse semáforo fica na movimentada Estrada de Itapecerica, na periferia de São Paulo. Aqui o pedestre tem que esperar 90 segundos para o semáforo de pedestres abrir e apenas 10 segundos para atravessar. Lembrem-se, estamos falando de um hospital, com idosos, crianças ou pessoas com mobilidade reduzida, fazendo a travessia de 6 faixas em 10 segundos.

Por fim, resolvi escrever esse post depois que eu li no Blog da Campanha Dê Preferência a Vida, um texto feito pelo Jornal Agora que apontou as “infrações” constantemente cometidas pelos pedestres mas em nenhum momento tentou discutir as causas.

Falou que no Largo do Arouche, 28 pedestres atravessaram fora da faixa. Mas sequer observaram se havia uma faixa de pedestres a menos de 50 metros deles e se elas atendiam os seus destinos. Disse que na Rua Santa Ifigênia a maioria dos pedestres anda nas ruas. Mas não comentaram que as calçadas são estreitas, incompatíveis com o grande fluxo de pedestres da região, nem falaram que elas são tomadas pelos camelôs. Eu caminho constantemente naquela rua e raramente ando na calçada, até porque é impossível fazer isso se tiver uma sacola nas mãos.

Por último disseram que 38 pessoas na Consolação, se aventuraram em poucos segundos de uma das fases do Farol Vermelho. Mas eles mediram quanto tempo o pedestre é obrigado a esperar o semáforo fechar, ou em quantos segundos ele é obrigado a atravessar? Analisaram se o tempo que o semáforo fica aberto ao pedestre é suficiente para uma pessoa com dificuldades de locomoção fazer a travessia?

Eles pararam para analisar o quanto é desconfortável ter que fazer uma travessia de uma grande avenida em dois estágios, tendo que esperar um ciclo de semáforo no canteiro central?

A falha que eu vejo no Blog da Prefeitura, (que até então vem fazendo um excelente trabalho de conscientização) foi simplesmente reproduzir o texto do Jornal Agora, como se fosse a opinião da prefeitura. O correto por parte dela seria exigir do jornal uma cobertura mais imparcial, ou mesmo usar a matéria para fazer o contraponto, defendendo as condições dos pedestres, até porque o jornal pareceu escrever apenas sobre a ótica do motorista que desconhece a realidade do pedestre.

Aliás, cabe ao jornal uma retratação, pois não só em apontar um problema, é obrigação de qualquer meio de comunicação, procurar descobrir as causas.

Fica o alerta, infelizmente nossas leis são falhas e interpretativas, cabe então aos nossos gestores interpretar, mas sempre com o intuito de combater as injustiças, defendendo aqueles que são mais fracos e buscando a preservação da vida.

E aos motoristas que insistem em tentar punir os pedestres, dividindo uma responsabilidade que na maioria das vezes só cabe a ele, que prestem atenção na belíssima frase escrita pelo jornalista Milton Jung e procurem dirigir sempre com prudência, pois “O pedestre não paga multa, paga com a vida!”